QUEM É O SECRETÁRIO DO DIABO?
Ave Maria! 18 horas. Os sinos dobram na Matriz chamando os cristãos de São Vicente para a contrição dos atos. Deus abençoando as suas criaturas nesta hora de paz e de recolhimento. O mel sendo cozido nos grandes tachos do Gracioso deixa na cidadezinha o adocicado cheiro da cana. Homens pardos trabalham nas fornalhas, na moenda, nos alambiques de Pedro Guedes. As mulheres descascam a mandioca que breve estará assada e fininha na mesa , engrossando o feijão ou na forma de bejus ou bolos. Frutos da terra e do trabalho do homem. Homens que foram criados à imagem e semelhança de Deus. Todos filhos do mesmo Criador. Todos?
Somos irmão em Cristo, pregava o padre, as catequistas, as professoras do grupo escolar, nossas mães e avós. Entretanto, como poderíamos ser irmãos de Secretário do Diabo, Besouro do Cão, Tapioca de Luto, Beiço de Porco, Balaio de Macumba, Bola Sete e de Amara do Alto da Igreja, tida como feiticeira.
Quando as crianças passavam da conta nas traquinadas, era comum se ouvir: Vou chamar o negro do cemitério velho pra te pegar! Menino que diz nome feio vai para o inferno cheio de negro do Engenho para jogá-lo dentro do tacho quente de mel! Secretário do Cão já passa por aqui...
Eram poucas as pessoas pretas
Ser negro
A minha geração cresceu ouvindo e vivenciando esta cruel e desumana realidade. Não lembro de nenhum colega de escola negro. E os que tinham mais características africanas à flor da pele jamais indagavam a si mesmos se eram pretos. Ser negro e assumir a negritude era sinal da aceitação irrevogável de que o Diabo o escolhera para as suas hostes. Dos lugares onde andei nunca presenciei semelhante racismo quanto a camuflada hostilidade vicentina. È de se perguntar por quê. Talvez porque o povo de São Vicente tivesse pavor da pobreza, da submissão, da exclusão social e também religiosa da nossa terra; o ranço do poder que somente é superior quando oprime, mente, calunia, apavora; o legado colonial, o sobejo da escravidão que atualmente assume outra face tão nociva quanto a anterior, ou seja, no desemprego, na prostituição, no alcoolismo, na falta de um porvir... Oferecendo uma vida de faz de conta, tão vazia quanto às vidas daqueles que acreditam ser superiores porque detêm o mando, o dinheiro, o pseudo conhecimento acadêmico, enfim uma pele com menos melanina e um cabelo escovado, mas que não pode sentir o pingo da chuva. Não é de se estranhar que vivamos atualmente com tanto medo, tanta violência, tanta dor.
Quaisquer formas de preconceitos são alicerçadas quando acreditamos, erroneamente, que a nossa verdade se sobrepõe ao do outro. Damos o nome de tolerância. Precisamos mudar esta nomenclatura já que pregamos tanto a comunhão. O Brasil é mestiço e isto faz de nós uma nação ímpar. São Vicente Férrer tem muitos brancos, mas isto não faz do nosso município um torrão justo, próspero e igualitário, muito pelo contrário, embora seja uma terra de solo fértil, rica em águas e verde, a maioria da população ainda vive como se ainda houvessem coronéis e feitores: sem lar, sem ar, sem terras, sem teto e sem razão. Pergunto: Como falar da nossa cristandade e cidadania se o futuro se mostra ainda com o furo de bala na pele do presente?
Lá vem o Secretário do Diabo, ele usa paletó preto, mas, cuidado, ele é branco!!!
Vou chamar dona Amara para amansar a minha vida de sobressaltos, ela decerto cantará assim: nesta rua, nesta rua tem um bosque que se chama que se chama solidão, dentro dele mora um anjo que roubou meu coração. E eu dormirei como uma criança e acordarei como homem. E os meus filhos e os filhos dos meus filhos herdarão a terra que tanto amo e que quero vê-la não feita de brancos, pretos, pardos ou amarelos, mas de homens de boa vontade. E quando os sinos dobrarem na AVE MARIA, eu terei muito mais a agradecer a Deus do que pedir.
Escrito por: Jorge Borges
Fonoaudiólogo, Teatrólogo e Poeta.
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