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quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Vento e Raiz

QUEM É O SECRETÁRIO DO DIABO?


Ave Maria! 18 horas. Os sinos dobram na Matriz chamando os cristãos de São Vicente para a contrição dos atos. Deus abençoando as suas criaturas nesta hora de paz e de recolhimento. O mel sendo cozido nos grandes tachos do Gracioso deixa na cidadezinha o adocicado cheiro da cana. Homens pardos trabalham nas fornalhas, na moenda, nos alambiques de Pedro Guedes. As mulheres descascam a mandioca que breve estará assada e fininha na mesa , engrossando o feijão ou na forma de bejus ou bolos. Frutos da terra e do trabalho do homem. Homens que foram criados à imagem e semelhança de Deus. Todos filhos do mesmo Criador. Todos?

Somos irmão em Cristo, pregava o padre, as catequistas, as professoras do grupo escolar, nossas mães e avós. Entretanto, como poderíamos ser irmãos de Secretário do Diabo, Besouro do Cão, Tapioca de Luto, Beiço de Porco, Balaio de Macumba, Bola Sete e de Amara do Alto da Igreja, tida como feiticeira.

Quando as crianças passavam da conta nas traquinadas, era comum se ouvir: Vou chamar o negro do cemitério velho pra te pegar! Menino que diz nome feio vai para o inferno cheio de negro do Engenho para jogá-lo dentro do tacho quente de mel! Secretário do Cão já passa por aqui...

Eram poucas as pessoas pretas em São Vicente Férrer. Havia muitos mestiços, pardos. Os mulatos ascendiam um tantinho na condição social e cristã, sendo considerados pretos de alma branca. Mas aqueles com mais característica subsaariana eram tidos como mensageiros do Mal: feiticeiros, discípulos de satanás, devoradores de criancinhas, portadores de maus presságios. Lá vem um negro ali... Deus me livre e guarde!!! Negro não presta! Negro só é bom com o lombo sangrando! O maior castigo do mundo é ver uma filha casada com negro! Negro no clube é para faltar luz! Veja que coisa mais feia... Aquilo é lá gente... Todas estas observações eram ditadas por senhoras e senhores católicos, brancos. Sou pobre, mas sou branco!!! Sou analfabeto, mas sou branco! Sou bêbado, mas sou branco! Sou ladrão, mas sou branco! Sou um criminoso, mas sou branco! Sou a gota serena, mas não sou preto!!!

Ser negro em São Vicente Férrer era o mesmo que ser um demônio, um ente do inferno lembrando aos da terra que o Diabo podia ser invisível, mas os seus secretários andavam pela rua! Contudo, cada cidadão vicentino dizia: Não sou racista!!! E ainda diz. Terá sido o medo de cometer um crime inafiançável perante a legislação penal brasileira? Ou será que nos altares de São Vicente Férrer há uma vaga para São Benedito - mesmo do tamanho de Santo Antônio? A forma mais eficiente de reforçar um preconceito é achar que ele não existe.

A minha geração cresceu ouvindo e vivenciando esta cruel e desumana realidade. Não lembro de nenhum colega de escola negro. E os que tinham mais características africanas à flor da pele jamais indagavam a si mesmos se eram pretos. Ser negro e assumir a negritude era sinal da aceitação irrevogável de que o Diabo o escolhera para as suas hostes. Dos lugares onde andei nunca presenciei semelhante racismo quanto a camuflada hostilidade vicentina. È de se perguntar por quê. Talvez porque o povo de São Vicente tivesse pavor da pobreza, da submissão, da exclusão social e também religiosa da nossa terra; o ranço do poder que somente é superior quando oprime, mente, calunia, apavora; o legado colonial, o sobejo da escravidão que atualmente assume outra face tão nociva quanto a anterior, ou seja, no desemprego, na prostituição, no alcoolismo, na falta de um porvir... Oferecendo uma vida de faz de conta, tão vazia quanto às vidas daqueles que acreditam ser superiores porque detêm o mando, o dinheiro, o pseudo conhecimento acadêmico, enfim uma pele com menos melanina e um cabelo escovado, mas que não pode sentir o pingo da chuva. Não é de se estranhar que vivamos atualmente com tanto medo, tanta violência, tanta dor.

Quaisquer formas de preconceitos são alicerçadas quando acreditamos, erroneamente, que a nossa verdade se sobrepõe ao do outro. Damos o nome de tolerância. Precisamos mudar esta nomenclatura já que pregamos tanto a comunhão. O Brasil é mestiço e isto faz de nós uma nação ímpar. São Vicente Férrer tem muitos brancos, mas isto não faz do nosso município um torrão justo, próspero e igualitário, muito pelo contrário, embora seja uma terra de solo fértil, rica em águas e verde, a maioria da população ainda vive como se ainda houvessem coronéis e feitores: sem lar, sem ar, sem terras, sem teto e sem razão. Pergunto: Como falar da nossa cristandade e cidadania se o futuro se mostra ainda com o furo de bala na pele do presente?

Lá vem o Secretário do Diabo, ele usa paletó preto, mas, cuidado, ele é branco!!!

Vou chamar dona Amara para amansar a minha vida de sobressaltos, ela decerto cantará assim: nesta rua, nesta rua tem um bosque que se chama que se chama solidão, dentro dele mora um anjo que roubou meu coração. E eu dormirei como uma criança e acordarei como homem. E os meus filhos e os filhos dos meus filhos herdarão a terra que tanto amo e que quero vê-la não feita de brancos, pretos, pardos ou amarelos, mas de homens de boa vontade. E quando os sinos dobrarem na AVE MARIA, eu terei muito mais a agradecer a Deus do que pedir.

Escrito por: Jorge Borges

Fonoaudiólogo, Teatrólogo e Poeta.

E-mail: j.gborges@hotmail.com

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